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30 JUL > 12 AGO

MOLDAR A TERRA

Superação da Unidade Territorial do Desenho

 

Philip Rawson, no seu livro intitulado Drawing, defende o desenho como sendo o “elemento numa obra de arte que é independente da cor ou do espaço propriamente tridimensional.”[i] De seguida, o mesmo autor concebe o desenho como uma atividade prévia às categorias da pintura ou da escultura. Também John Berger, no seu livro intitulado Berger on Drawing, distingue o desenho da pintura, referindo um certo caráter transparente do desenho no sentido em que este não tende a apagar as marcas da sua génese por debaixo de artifícios. “Os desenhos revelam mais claramente o processo da sua execução, do seu próprio olhar. A facilidade de imitativa da pintura parece ser mais importante que as razões da sua construção. as grandes pinturas não estão disfarçadas desta forma. Mas mesmo um desenho de terceira categoria revela sempre o processo da sua criação.”[ii] O desenho é assim altamente transparente, mas podemos dizer que ele é também imediato, económico, direto, regista mais rapidamente e eficazmente qualquer pensamento, sentimento ou perceção. Isso é tão verdade, que mesmo perante uma reprodução de um desenho, podemos seguir e aprender com todos os passos que foram dados para a produção daquela imagem desenhada. Em nenhum outro meio, aura e relevamento da aura, ocorre tão eficazmente como no desenho.

 

O desenho é uma forma de pensamento em ato. Não um pensamento como aquele que ocorre na filosofia, mas antes um pensamento, diríamos, impuro, indisciplinado, arriscado e por isso, menos cauteloso. Trata-se de um pensamento que procura compreender as coisas visíveis e/ou invisíveis no exato momento em que a questão se coloca. No desenho, pergunta e resposta são gémeas, os melhores desenhos são aqueles que nunca resolvem esta sequência dialética. O pensamento no desenho é realizado com o auxílio da linguagem muda dos materiais riscadores e suportes do que é feito. Aqui a mão é uma colaboradora arrojada do cérebro e não uma serva obediente deste. Mas se assim é, o cérebro conta com as conquistas da linguagem verbal principalmente de todas as que ajudam a tecer afinidades.

 

Cada imagem desenhada, desde que cumpra este desígnio que aqui estamos a revelar precariamente, é uma verdadeira teoria.[iii] Cada desenho produzido incita o corpo vivo a viver, primeiro o do artista que o produz, depois o corpo de quem o observa atentamente.

 

Cada desenho de Leonor Neves adquire a sua forma a partir das repetidas tentativas de fusão das linhas, cada investimento sobre o suporte apesar de querer seguir o anterior, introduz sempre uma diferença e é com essa insistência na diferença que se constrói e densifica o desenho.

 

Os desenhos chegam a ser tão densos que apetece agarrar. Funcionam como coisas com que nos poderíamos deparar, ou entrar, como túneis em redemoinho, torsões ou ligações diagramáticas. Há uma tactilidade evidente em cada desenho, mas para que ela exista tem que existir uma propensão excessivamente háptica por parte da autora, quer na forma como observa quer na forma como procura o desenho no exato momento da sua execução. As formas em Leonor Neves não são reais, decorrem mais do processo e do acontecimento, do que de qualquer exercício mimético.

 

Os desenhos que agora se mostram na casa das artes em Tavira são feitos com muitos feixes de linhas ou manchas, são deliberadamente densos. Raramente os desenhos ocorrem a partir de um golpe só. Desenvolvem-se antes num período dilatado de tempo, uma definição contínua e repetitiva em direção à pequena diferença. Neles vemos o testemunho da acentuação, da definição enquanto vibração, da revolução ou até da escavação. O trabalho sobre o suporte tanto inscreve como rasura, transformando a gestação das formas numa espécie de campo de batalha.

 

A propensão de Leonor Neves para a densidade está de tal forma marcada no seu labor, que mesmo quando os trabalhos são suscitados por imagens fotográficas, acabam por procurar outras coisas que nenhuma imagem fotográfica consegue revelar. Por exemplo, uma fotografia de paisagem encontrada ocasionalmente no manual de arquitetura paisagista, pode ser pretexto para Leonor fazer desenho, mas este uma vez iniciado, esquece a natureza plana e ótica da linguagem fotográfica para chegar à tatilidade e aos gestos dançados pela mão por entre linhas tectónicas, até acreditamos que esteve lá e percorreu aquele lugar com os seus próprios pés. Mas não, estamos perante um tipo de imaginação material que restitui presença, expressão e força juntamente com a edificação de ideias pré-arquitetónicas.

 

Samuel Rama, Julho de 2022

Leonor Neves, 1999 (Lisboa), Frequenta o Mestrado em Artes Plásticas na ESAD.Cr. Em 2021 foi selecionada para o Prémio Arte Jovem Fundação Millenium BCP, onde lhe foi atribuído o Prémio Aquisição Colecionador Privado. No mesmo ano recebeu uma Bolsa de Mérito atribuída pela Direção Geral do Ensino Superior e outra pela Câmara Municipal das Caldas da Rainha. Em 2022 foi selecionada para integrar a XXII Bienal Internacional de Arte de Cerveira. Integrou recentemente a Coleção de Múltiplos – Carpe Diem Arte e Pesquisa e Coleção Figueiredo Ribeiro.

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